Gisela Gold: Quem disse que só os jazzistas improvisam?

por Gisela Gold

Ando acostumada de ver gente que escorre música pelas veias, juntar sua patota e bolar solos de cada instrumento para dar barulhinho bom nos nossos tímpanos. São as jam sessions. A gente sai de lá achando que os caras são uns doidos, que fazem aquilo do nada. Vem um vento bom, dá coceira nos dedos e eles saem soprando naquele instante uma coisa nova que a gente não sabe muito bem de onde veio. Reconhece uma semelhança com algum clássico, mas é diferente, é muito deles. Vamos ao dicionário e veremos que isso parece com algo denominado improviso.

Um dia tirei a limpo com um desses improvisadores como ele fazia aquilo. Ele me disse que são anos de não improvisação. Anos de não doideira. Anos de estudo na linha reta. Quem permite que o dedo faça malabarismos tem intimidade o suficiente com cada pedaço da corda onde ele vai se equilibrar.

Foi o que senti com o Iluminuras. Vi o melhor de pessoas que me emocionaram na sua intensidade. O balé dos dedos a que me referi nas improvisações jazzísticas foi trocado pela sinfonia corporal composta de improvisos. De movimentos feitos.

Todo dia alguém nos pergunta se aquele filme vale a pena ou não, se aquele show vale a pena ou não, se aquela exposição vale a pena ou não. Então vou me atrever a dizer, no meu português arroz-feijão: bom é aquilo que me faz sair diferente de quando entrei. Se saio na minha matemática afetiva a mesma, digo “não”. Boa é a arte que deixa a gente tagarela no olho. Um olho que quer ser cada vez mais modificado, um olho que nota que, por baixo de um improviso de movimentos de cabeça, tronco e membros, há pesquisa e trabalho de anos por debaixo do pano. Há afeto na escolha da música, na escolha dos elementos que vão brincar em cena. Dos corpos e da tentativa de tradução de seus encontros e desencontros no namoro com outra arte: a pintura. Bom ver a ginga da dança contemporânea traduzida naquele exato momento pelas mãos de um pintor, que brinca de improvisar o que sente daquela batucada corporal. Não sou crítica, mas apenas um ser humano que diz, com os pêlos dos braços levantados, “nossa”, quando arte boa vem me namorar.

Iluminuras não tinha roteiro e tocou o olhar do cineasta Yves Goulart e vestiu roupa de filme. O que mostra que é impossível ficar passivo diante de gente em movimento. Iluminuras me fez arrepio no pêlo, porque lembrei dos meus olhos sempre de criança que vê a brincadeira no palco, o improviso. Esse improviso tão disfarçado de “foi tudo bolado na hora”. E a gente finge que acredita. Mas sente lá dentro que nossos olhos se espantam pela dança de quem já ficou parado pensando o movimento.

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